PRÁTICA DOCENTE NA FORMAÇÃO DO TURISMÓLOGO

PEDAGOGICAL PRACTICES FOR TOURISM PROGRAMMES

Marcia Maria Cappellano dos Santos[1]

Resumo: Pensar o ensino superior em Turismo é compreender que o saber profissional do professor abrange saberes relacionados com o conhecimento especializado de sua área de formação e aqueles relacionados com a práxis docente. Porém, muitos professores tendem a ver-se mais como expertos disciplinares do que como docentes, orientando sua conduta em aula por um conhecimento tácito, baseado na lógica do pensamento cotidiano e constituído por modelos de atuação vinculados a contextos escolares concretos, interiorizados mimeticamente e reproduzidos em sala de aula. Vê-se aí um paradoxo: mesmo se constatando o incremento dos estudos científicos sobre o fenômeno turístico, não se tem verificado suficiente realinhamento dos avanços dos conhecimentos especializados com os da prática pedagógica na formação do turismólogo. Na disciplina Prática de Ensino: Planejamento e Operacionalização, oferecida no Mestrado em Turismo da Universidade de Caxias do Sul, as reflexões teórico-práticas têm conduzido a um repensar da ação docente de nível superior no âmbito da formação em turismo. Os resultados alcançados têm se mostrado positivos na avaliação dos mestrandos, especialmente quando confrontados os graus de compreensão dos conhecimentos no início e término da disciplina e identificados os ganhos no estabelecimento de relações e aprofundamentos oportunizados por uma outra epistemologia de aprendizagem.

Palavras-chave: Formação do turismólogo. Prática docente.

 

Abstract: To think about higher education in tourism is to understand that professors need specific knowledge of its field of work as well as knowledge of pedagogical practices.  Nevertheless, a great number of professors see themselves just as experts in one specific field of work, and act based on tacit knowledge, common sense and mimetically reproduced models. A paradox can be revealed: even though scientific research on tourism is growing, the same pace is not detected in teaching practices for  education in tourism programmes. At the course Teaching Practices: Planning and Operation, at the Tourism Master Programm at Universidade de Caxias do Sul, theoretical and practical reflections led to rethinking teaching practices in higher education tourism programmes. From students point of view, outcome was positive, mainly compared with their own comprehension habilities at the beginning and at the end of the course and when enrichment due to epistemology of learning are identified.

Key words: Education for Tourism Programmes. Teaching practice.

Introdução

Esta reflexão tem início com a contraposição de previsões sobre o futuro do turismo a que se referem o empresário Bill Gates, em sua obra A estrada do futuro, e o estudioso Ethevaldo Siqueira, cuja publicação, 2015: como viveremos, tematiza o impacto das tecnologias de informação e da comunicação na vida humana, na próxima década, segundo a visão de 50 famosos cientistas e futurologistas do Brasil e do mundo. Veja-se o que dizem os autos.

Esta reflexão tem início com a contraposição de previsões sobre o futuro do turismo a que se referem o empresário Bill Gates, em sua obra A estrada do futuro, e o estudioso Ethevaldo Siqueira, cuja publicação, 2015: como viveremos, tematiza o impacto das tecnologias de informação e da comunicação na vida humana, na próxima década, segundo a visão de 50 famosos cientistas e futurologistas do Brasil e do mundo. Veja-se o que dizem os autores:

As viagens de negócio talvez diminuam, mas as de lazer crescerão, pois as pessoas poderão tirar férias trabalhando, sabendo que podem estar conectadas a seus escritórios e lares por meio da estrada. A indústria do turismo irá mudar, ainda que a quantidade de viagens possa permanecer igual. Os agentes de viagem, tal como todos os profissionais cuja função era oferecer acesso especializado a informações, terão de agregar valor de novas maneiras. (GATES, 1995, p. 225)

Por outro lado, Ethevaldo Siqueira (2004, p. 64-83)  adverte para o fato de que,

[...] o entretenimento da segunda década do século 21 será predominantemente eletrônico, digital e interativo. [...] Para a classe média, surgirão novidades como as viagens virtuais, capazes de levar qualquer espectador aos mais belos lugares do mundo. [...] Pelo menos uma vez por semana, poderemos visitar esses lugares de sonho sem sair de casa. A convergência digital tende a nos conferir o dom da ubiqüidade. Assim acontecerá com milhões de brasileiros: se não pudermos viajar pelo mundo, o mundo virá até nossa casa.

Ainda no que se refere ao turismo, Siqueira acrescenta:

O turismo real era até poucos anos, mais especificamente o começo do século 21, um privilégio de menos de 3% da humanidade. No Brasil do ano 2000, só uma escassa minoria de um entre cada 28 cidadãos podia sonhar com a perspectiva de viajar pelo mundo e desfrutar suas maravilhas turísticas. [...] Desse modo, na metade da segunda década deste novo século, até os mais céticos começarão a aceitar a tese da democratização virtual da cultura, do turismo, da arte e do lazer mais sofisticado. Em contrapartida, o turismo tradicional ao exterior, exigindo o transporte físico de cada um de nós, tende a tornar-se cada dia mais elitista, ou seja, um privilégio de poucos. [...)]Mesmo aqueles brasileiros que se encontram entre a minoria de três por cento da população do mundo que faz viagens internacionais, vão adorar esse avanço. (SIQUEIRA, 2004, p. 83-4).

Tendo presente os graus de respaldo que as qualificações pessoais e profissionais dos autores conferem às projeções e sem entrar na análise do mérito destas, dois aspectos chamam a atenção: o hiato de tempo que separa a publicação de ambas as obras – menos de 10 anos (a publicação de Ethevaldo Siqueira consultada corresponde à segunda edição) – e as diferenças dos cenários relativos ao turismo divisados nesse breve período. A respeito dessa diversidade, gostaria de ressaltar, no entanto, dois aspectos: de um lado, o plano não periférico em que se processariam as mudanças previstas; de outro, o desenvolvimento acelerado desses processos. Ter em conta essas projeções, torna-se, pois, inevitável, não só à estrutura do turismo presencial (hotéis, agências, companhias aéreas, de trens, ônibus de viagem, restaurantes, etc.), mas também ao sistema formal de ensino voltado à formação do turismólogo e à formação dos respectivos formadores. Isso porque são múltiplas as implicações (éticas, políticas, econômicas, sociais, culturais, tecnológicas) que delas poderão advir, e também porque passa a ser necessário desenvolver novas ferramentas para pensar a imponderabilidade do futuro e a viabilidade de lidar eficazmente com ela.

Futuro e preparação do Turismólogo

“O passado passou. O presente passa rapidamente a cada dia. A única coisa que podemos mudar é o futuro”, diz W. Warren Wagar, citado por Frederic M. Litto, em seu artigo A Universidade e o Futuro do Planeta (2004, p. 212). Se assim o é, e convergindo o foco especificamente para o processo educacional no âmbito do turismo, como a preparação para o futuro está presente em nossas universidades nos diferentes níveis de ensino?

Não sendo o objetivo deste artigo o levantamento exaustivo da produção científica nessa direção, tampouco de currículos que estruturam os cursos universitários na área do turismo – porquanto estaremos abordando um aspecto qualitativo do ensino – utilizarei inicialmente como referentes desencadeadores de discussão alguns elementos extraídos das obras já citadas e outros, pontuados no livro “A sociedade pós-industrial e o profissional em turismo”, de Luiz Gonzaga Godói Trigo, e “Turismo: como aprender, como ensinar”, organizado pelo mesmo autor.

Conforme consta da apresentação deste último,

foi pensando em todos os que se interessam pela educação nessas áreas que os organizadores reuniram trinta especialistas para comentarem 24 disciplinas ou atividades pedagógicas relacionadas ao curso de Turismo (TRIGO, 2001).

No volume dedicado às disciplinas de formação básica, estão textos em que se articulam estudo do turismo com filosofia, história, geografia, marketing, estatística, estudos ambientais, metodologia científica.

É apresentado um roteiro com considerações específicas sobre uma determinada disciplina, sua relação com o turismo, como ela pode ser ministrada, seu conteúdo básico, bibliografia e algumas reflexões sobre como se enquadra no contexto maior do turismo. São propostas abertas que podem ser ampliadas ou adaptadas à região geoeducacional, à instituição e aos alunos dos mais variados lugares e segmentos do Brasil (TRIGO, 2004, p. 9).

Quanto à segunda obra referida, em seu capítulo 7, A Educação e os Novos Tempos, Trigo (2004), percorrendo conceitos, transformações valorativas e factuais afetos à sociedade pós-industrial (segundo perspectivas analíticas de diferentes estudiosos), retoma os educadores ingleses Robin Usher e Richard Edwards, os quais traçam sugestões e diretrizes abertas para orientar a educação nas sociedades pós-industriais, com base em seu entendimento de que a nova ordem socioeconômica da pós-modernidade, associada particularmente às mudanças acarretadas pelas tecnologias de informação e comunicação, está também associada ao crescimento do setor de serviços e às formações sociais pós-industriais. Ainda conforme os educadores, o moderno centro de produção industrial foi substituído por importantes centros de consumo – serviços financeiros e econômicos, grandes centros de comércio, áreas de entretenimento e parques temáticos. Essa nova sociedade emergente “se organiza em redes e não em pirâmides de poder; em células interdependentes e não em engrenagens hierárquicas; no centro de um ecossistema de informações e não por vias industriais lineares”, destaca Joel de Rosnay, citado por Marcon e Moinet (2001, p. 39).

Estando o campo educacional inserido nesse cenário, afirma Trigo que a educação não pode ficar à margem das revoluções conceituais e dos sismos epistemológicos. Segundo ele, o approach pós-moderno “implica uma abertura pessoal, por meio de um diálogo amplo e crítico com os especialistas, com outros textos, com todas as variedades da tradição educacional também”. (TRIGO, 1998, p. 193-195).

Ainda dentro desse quadro, o pesquisador ressalta que a educação dever ser mais diversificada em termos de objetivos e processos, devendo se espelhar no contexto da diversidade cultural, mais do que nas normas logocêntricas universais. Ela não pode mais ser vista como um meio de reprodução da sociedade, nem como instrumento de reengenharia social em grande escala. Ela não pode ser determinista nem determinada.

As considerações descritivas e analíticas até aqui postas vêm, pois, constituir em evidência a complexidade do cenário presente (de construção do futuro) e das relações estruturais e conjunturais que nele se estabelecem. E como decorrência natural, elas convergem a atenção para a imperiosidade de que se tenha clara a complexidade dos processos, das metodologias e ferramentas educativos a serem desenvolvidos na universidade, assim como a multiplicidade de alternativas de ação que se apresentam aos docentes e alunos.  Particularmente, as considerações feitas encaminham à necessária clareza, quer por parte das instituições e instâncias governamentais reguladoras e das instituições de ensino superior, quer por parte dos próprios professores, de que, além de buscar-se o desenvolvimento técnico-científico, há que se buscar, metacognitivamente, desenvolver, redimensionar, recriar competências de docência. Em outras palavras, há que se entender o formador de turismólogos (das áreas básicas ou específicas), não apenas como um especialista em Turismo, mas, essencialmente, como um professor de turismo, que agregue os quesitos necessários para que, em sua atuação, se lhe identifiquem as características de um profissional de ensino superior e se lhe outorguem as respectivas prerrogativas.

Dimensões do ato pedagógico e sua rede de relações

O ato pedagógico, como sabemos, extrapola em muito o evento aula. Quando a educação é entendida como um sistema aberto, portanto, que interage com o ambiente, são realizadas trocas de energia, materiais e informação e desencadeados no sistema processos de auto-regulação, acomodação e assimilação. Essas trocas e processos assumem maior complexidade e relevância quando os vemos no intrincamento da rede conceitual e operacional tecida inter e intradimensões do próprio ato pedagógico –, referenciado por supostos ético-políticos, epistemológicos e psicopedagógicos – e no intricamento com o contexto de inserção do processo educativo. No caso do ensino de turismo, no intricamento com o contexto de inserção na perspectiva projetiva já abordada.

Como assinala Santos (2001), ao focalizar as atividades de ensino no processo de educação formal, torna-se fundamental, para relacioná-las ao universo das aspirações e das necessidades da sociedade, relacioná-las às concepções de ciência que presidem a atividade científica, por força das implicações que essas concepções têm na realidade escolar e, por conseguinte, no cumprimento, pela educação formal, de seu papel social de capitalizar intelectual e politicamente o cidadão. Entendido o ensinar, entre outros múltiplos aspectos, como um modo de acesso ao conhecimento científico, ele se constitui, ao mesmo tempo, num modo de acesso aos resultados produzidos pela ciência e ao processo de produção de conhecimento científico. Isto equivale a dizer que os conceitos de ciência, de produção de conhecimento científico e do método de fazer ciência refletem-se no conceito de educação e na atividade de ensino.

Uma rápida passagem pelas formas de concretização do ato de ensinar desde a institucionalização da escola ocidental como lugar da educação formal, configura o ensinar, fundamentalmente, como modo de aceder ao conhecimento científico, cuja efetivação evidencia, historicamente, dois processos básicos: acesso ao conhecimento produzido enquanto um fim em si mesmo – forma ainda predominante – e acesso ao conhecimento produzido, enquanto parte do processo de produzir conhecimento. Nesses processos estão subjacentes, respectivamente, duas concepções de ensino: aquela em que este é entendido como transmissão do conhecimento produzido ao aprendiz e a outra, em que é entendido como orientação do aprendiz para aprender a produzir conhecimento.  No primeiro caso, o professor é o transmissor de um conhecimento sistematizado que ele detém – o conhecimento científico, considerado como tal porque considerado verdadeiro –, e o aluno é aquele que deve adquirir esse conhecimento “relevante” – cuja relevância, institucionalizada, está no fato de ser considerado científico.  No segundo caso, o professor é um orientador do aluno (este, um aprendiz de pesquisador) para propiciar-lhe as condições de sistematizar o conhecimento científico tendo em vista a solução de situações-problema (ou de problemas de pesquisa, nos níveis superiores de ensino) transformadas em situações-problema (ou problema) de ensino.  E, nesse sentido, à relevância científica vem juntar-se a relevância pragmática.

Quando o ensinar traduz a primeira concepção, traçar objetivos de ensino equivale e restringe-se a objetivar conteúdos (identificar, reconhecer, associar, comparar atividades turísticas, orações, bacias hidrográficas, correntes literárias, classes de animais; quando traduz a segunda concepção, traçar objetivos de ensino consiste em identificar situações-problema com as quais o aluno deverá lidar, para o que deverá acessar, sistematizar (descrevendo, analisando, sintetizando, selecionando etc.) e utilizar os conhecimentos disponíveis e necessários. Poderiam ser consideradas situações-problema, por exemplo, o fortalecimento do turismo virtual, a infestação de plantações por pragas, uma situação de concordata, a adoção de um critério polêmico de justiça, uma epidemia, a necessidade de aumentar a competitividade de um produto, a reincidência de dores ou distensões musculares, a inconsistência de um conceito ou explicação de um fato, a incongruência de inferências teóricas, entre muitas outras. Nessa concepção, o foco do ensinar desloca-se então para as relações do aprendiz com a situação-problema, ou seja, para as competências de descrevê-la, analisá-la, relacioná-la, interpretá-la, solucioná-la à luz dos conhecimentos necessários e disponíveis, mobilizando-os, sistematizando-os, ou ainda, quando for o caso, questionando-os, tornando-os eles próprios uma situação-problema.

No momento em que o ensinar resume-se a transmitir conhecimentos consagrados, resultados da pesquisa científica, é porque os tem como verdades inquestionáveis, portanto, como doutrinas ou sistemas de dogmas que se acumulam pelo progresso científico (numa perpetuação de posições do positivismo científico). Em decorrência dessa visão dogmática de ciência, a aplicação de conhecimentos limita-se àquelas situações que vêm confirmá-los como verdadeiros, não como questionáveis; ao aluno cabe “agir passivamente”, adquirir e aceitar o conhecimento científico transformado em conhecimento acadêmico, não lhe sendo propiciado preparar-se para situações incertas (não prototípicas), únicas e conflitantes da realidade. Como argumenta Reboul (1982, p. 129), “o poder que confere o saber destrói o saber, muda a verdade em dogma e o pensador em censor”.

Se esse tipo de ensino faculta ao aluno ampliar o capital intelectual, não lhe faculta, todavia, ampliar o capital político, ou aumentar os limites de sua possibilidade de agir, de intervir, de criar, capital esse fundamental na bagagem profissional. Acresce-se ainda a essa posição epistemológica, a permanência de uma visão metafísica da realidade e, historicamente, da educação. Esta tem sido vista e interpretada sempre a partir do conceito de educação, isto é, da essência daquilo que se denomina “educação” e não a partir dos problemas, das experiências, da prática cotidiana do homem situado no tempo e no espaço, os quais permanecem num plano secundário, ou simplesmente são desconhecidos frente à pretensa verdade do discurso metafísico. O conceito reina sobranceiro e longe dos fatos, longe da realidade.

Nesse caso, a informação tratada como algo em si geralmente é o elemento desencadeador da atividade pedagógica. Disso resultam ações predominantemente expositivas, exemplificativas – ou explicativas – por parte do professor, e predominantemente reprodutivas, por parte do aluno. Na maioria dos casos, as operações cognitivas que são esperadas do aluno nem mesmo atingem o nível da transferência específica (aplicação da informação em situações similares àquelas abordadas em aula). Raras exceções são aquelas em que é esperada do aluno a identificação de princípios gerais, das estruturas ou fundamentos do objeto de estudo. Mesmo neste caso, o objetivo central da aprendizagem circunscreve-se ao universo da informação. As operações que o professor pretende que os alunos realizem configuram um exercitar – ou fazer daquilo que é substantivado, determinado, fixo, sem possibilidade de discussão crítica. Os objetivos do ensino não consistem num fazer determinado por referências da realidade entendida como processo, como mudança. E o professor que não percebe a realidade como constante transformação tem a tendência de considerar os conhecimentos como absolutos.

Por outro lado, quando o ensinar consiste na orientação para a aprendizagem e o desenvolvimento do comportamento de investigar, ele assenta suas bases na concepção contemporânea de ciência, em que a cultura científica, face aos problemas delimitados, é colocada em permanente questionamento. Nessa perspectiva, fundem-se, no ensino, os processos científico e o pedagógico. Uma pedagogia fundamentada no processo científico consiste essencialmente no ato de facilitar, de criar condições para que se aprenda a produzir conhecimentos científicos. O fazer científico transformado em fazer pedagógico não prepara o aprendiz para lidar apenas com o que é previsto; prepara-o para a permanente descoberta, para a observação e a análise da realidade, para a hipótese explicativa, para a experimentação, para a interpretação, para o novo.  Contrariamente ao ensino doutrinário, repetitivo, conservador, o ensino com base científica é inscrito numa outra epistemologia da aprendizagem, é inscrito numa atitude criativa, inovadora e, por isso, faculta, simultaneamente, a ampliação do capital intelectual e do capital político do aprendiz-aluno, do aprendiz-cidadão. Em outras palavras, contribui para o desenvolvimento das condições emancipatórias do aprendiz.

Discursivamente, estaria implícito nessa outra epistemologia da aprendizagem que aquilo que é dito apresenta um saber; aprender esse saber é compreendê-lo. Conhecer esse saber é apropriar-se criticamente dele. É importante aprender a apropriar-se dele criticamente. Aprender a apropriar-se do saber criticamente é aprender a sistematizar, questionar, comparar, analisar... Aprender esse aprender é importante, LOGO, aprenda esse aprender!

Paradoxo epistemológico-pedagógico no ensino de Turismo

Em vista de tais considerações e remetendo-nos ao ensino do Turismo, parece que nele vem se mantendo um paradoxo de natureza epistemológico-pedagógica: ao mesmo tempo em que se verifica o crescimento de estudos científicos sobre o fenômeno turístico em suas dimensões, em que, por exemplo, a plataforma do conhecimento veio dar conta de novas bases para as quais apontam os movimentos conceituais envolvidos nesses estudos, em que se aprofundam e multiplicam pesquisas reativas e proativas sobre as implicações socioeconômico-culturais da nova ecologia digital sobre a atividade turística, não se tem identificado na literatura, tampouco na realidade acadêmica, suficiente realinhamento dos avanços dos conhecimentos especializados com os da prática pedagógica na formação do turismólogo. O que vem ocorrendo tende a fortalecer-se no tradicionalmente estabelecido, o que, discursivamente, por sua vez, poderia ser assim explicitado: O que é dito é um saber; aprender o que é dito é aprender um saber. É importante aprender esse saber; LOGO, é importante aprender o que é dito. Aprenda o que é dito! – ainda que esse dito já venha sendo redimensionado na direção interdisciplinar, conforme dão conta, a título de ilustração, estudos e publicações como Turismo: como aprender, como ensinar, precedentemente mencionada.

Ora, faz-se oportuno aqui retomar o alerta de Bill Gates (1995). Segundo o empresário, será necessário preparar os indivíduos para adaptar-se a uma sociedade mutante e, nesse sentido, mais do que nunca, será importante uma educação que enfatize a habilidade para resolver problemas. Frederic Litto, em capítulo da obra 2015: como viveremos, ratifica essa percepção e ainda acrescenta:

As universidades hoje estão despreparadas para as mudanças que a sociedade requer: não são versáteis ou adaptáveis. (...) Hoje [as universidades] são seculares, complexas e não-elitistas, mas continuam prendendo alunos numa sala de aula com um professor à sua frente, quando sabemos que a melhor aprendizagem vem da experiência prática baseada na solução de problemas, no pensamento crítico e na interatividade entre os alunos. (...) Muitas universidades ainda não perceberam que a chegada das novas tecnologias de informação muda totalmente o papel da instituição no processo educacional e que aquelas que não conseguem (sic) se adaptar às mudanças, por inércia institucional, verão suas funções tornadas obsoletas, suas bases financeiras destruídas, sua tecnologia substituída e seu papel na investigação intelectual, reduzido. (LITTO, 2004, p. 216).

Conforme o autor – que se apóia em John L. Anderson – a prática educacional, hoje, tem seus limites governados por padrões baseados nos limites tecnológicos de hoje e mesmo de ontem, de tal forma que qualquer inovação tecnológica ou mudança radical em capacitação deve conformar-se com os limites do conhecimento antigo da engenharia. Por outro lado, sabe-se que o cidadão comum, cada vez mais e de forma torrencial, tem acesso a diferentes tipos de informação sobre fatos, crenças, situações, idéias que se apresentam no mundo, incluídas as produções, procedimentos e produtos científicos (vulgarizados), o que, naturalmente, acaba por incidir sobre aquele conhecimento prático, fruto da trajetória e da experiência de grupos sociais, solapando-lhe a fixidez e a aceitação indubitável. 

Contudo, essa aproximação dos discursos científico e do senso comum fatalmente incide sobre a própria ciência, que, pretendendo dominar e transformar o mundo – e não apenas contemplá-lo –, tende a orientar-se “para uma racionalidade instrumentalista” (SANTOS, p. 1989), a serviço do homem e da sociedade, elemento-chave no desenvolvimento dos povos. Em seus reflexos na educação, essa nova realidade acarretou inevitavelmente a necessidade de uma redefinição da função do professor, dos métodos e dos recursos de acesso ao conhecimento, assim como um redimensionamento da didática do ensinar e do aprender, com o foco do processo deslocando-se do produto para a competência do fazer, do reter para o pensar, do repetir para o transformar, do manter para o intervir. (SANTOS, 2001, p. 80) Esses aspectos estão na base do cumprimento do papel sócio-educacional do professor de contribuir para habilitar o aprendiz a estar apto para lidar com essa nova realidade. Conseqüentemente, esses mesmos aspectos sinalizam um novo e necessário equacionamento entre ação e preparação docentes.

Pensar o trabalho docente sob a perspectiva pedagógica, observa Beatriz T. Daut Fischer, supõe, antes de mais nada, redimensionar o contexto da sala de aula a partir de, pelo menos, três dimensões. A primeira, referente ao plano filosófico/ético/político, quando se busca indagar e responder acerca do sentido desse fazer/pensar/ fazer na universidade, refletindo em torno do compromisso e finalidades dessa instituição na sociedade brasileira hoje. A segunda diz respeito ao plano epistemológico/curricular/didático, que exige reflexões específicas referentes ao curso em que se atua, aos critérios para definir conteúdos e procedimentos operacionais, bem como ao ato de aprender em si, redefinindo a própria concepção do que se entende como conhecimento. A terceira dimensão aponta para aspectos de ordem psicológica, atingindo questões específicas das relações interpessoais, das subjetividades, do jeito de ser de cada um, das possibilidades e possíveis restrições dos sujeitos envolvidos. Esta é a dimensão que envolve o desejo, os sonhos, as utopias. (1996, p. 49-50)

Formação para a docência (em Turismo) na Pós-Graduação ‘stricto sensu”

Assim sendo, no presente estágio da reflexão e considerando: (a) a complexidade conceitual e operacional envolvida no ato pedagógico; e (b) possíveis ou prováveis repercussões da atividade docente no processo educacional, é chegado o momento de lançar algumas questões: Em que instância do sistema educacional superior vem sendo aberto espaço privilegiado para a formação pedagógica de formadores que atuarão no ensino superior? De que forma e em que graus esse processo, de um modo geral, vem se realizando? Que concepções de atribuição e competência estão subjacentes às práticas formativas existentes – ou  eventualmente existentes?

A primeira resposta remete aos cursos de pós-graduação stricto sensu, com o respaldo do próprio Plano Nacional de Educação, que associa a necessidade de melhoria do ensino oferecido à institucionalização de um sistema de avaliação e à ampliação dos programas de pós-graduação, cujo objetivo é qualificar os docentes que atuam na educação superior (Item 4.2 da Educação Superior). Não estou aqui me referindo aos cursos de mestrado voltados especificamente ao ensino em uma determinada área. Refiro-me aos cursos de mestrado acadêmico, em geral, que visam, em tese, à formação de professores para o exercício da pesquisa e da docência na educação superior, propiciando-lhes os subsídios teórico-metodológicos para o planejamento, a realização e a avaliação desses processos. No entanto, na prática, as propostas curriculares e de linhas de pesquisa, bem como os próprios critérios institucionais e nacionais de avaliação desses cursos, tendem a deixar em segundo plano, ou até mesmo a ignorar, a formação do docente de ensino superior – a formação do Mestre.

Na raiz dessa opção ou tendência, estão, possivelmente, entre muitos outros, algumas concepções ou pressupostos, que ouso inferir e comentar.

Seria previsível haver consenso no entendimento de que  pensar o ensino superior – e, no âmbito deste artigo,  o ensino superior em Turismo – remete à compreensão de que o saber profissional do professor, num primeiro nível, abrange, de modo indissociado, saberes relacionados com o conhecimento especializado de sua área de formação acadêmica (no caso, Turismo e domínios afins) e aqueles relacionados com a práxis docente, isto é, com os conceitos e teorias das ciências da educação. No entanto, como bem observam Rafael Porlán e José Martín (2000), muitos professores tendem a ver-se a si mesmos mais como expertos disciplinares do que como docentes, orientando e dirigindo sua conduta na ação pedagógica, por um conhecimento tácito, baseado na lógica do pensamento cotidiano e constituído por princípios e modelos de atuação vinculados a contextos escolares concretos, por eles experenciados. Assim, segundo os autores, ambos os componentes do saber profissional dos professores especialistas (o conhecimento disciplinar e o saber-fazer tácito) possuem características epistemológicas claramente distintas e se desenvolvem na mente do professor através de processos igualmente distintos. Afirmam a esse respeito Porlán e Martín (2000, p. 35-36):

El saber sobre la disciplina se ha generado a través del estúdio y la reflexión teórica, com frecuencia cargada de academicismo, mientras que el saber-hacer tácito se ha generado, bien por la interiorización mimética de formas de actuación docente observadas durante muchos años, mientras se fue alumno, bien por procesos más o menos intuitivos de ensayo y error durante el trabajo en el aula. Esta situación tiene como consecuencia una importante simplificación del conocimiento profesional que impide a los profesores abordar com rigor la complejidad de los procesos de enseñanza-aprendizage de las disciplinas.

Talvez esteja presente nesse quadro, como uma variável – não levada obrigatoriamente por todos ao nível da consciência – uma questão de déficit do status ocupacional da docência. De acordo com Marisa Vorraber Costa, as profissões tiveram sua autoridade formal e pública legitimada pelo fato de utilizarem o estatuto da ciência, segundo ela, um dos mais poderosos regimes de verdade conhecidos nesse imbricamento entre profissionalização, ciência e poder.

Comparada com outras áreas de conhecimento, ressalta a autora, a educação tem enfrentado dificuldades históricas para afirmar-se como um campo científico. Isso porque os conhecimentos que constituem seu âmbito de ação e investigação não são legitimados pelas práticas discursivas (preservacionistas e herméticas) típicas das demais ciências. Assim, constituída de saberes ético-práticos, nem sempre passíveis de validação pelos métodos científicos tradicionais, a educação enfrenta barreiras na conquista de legitimidade. (COSTA, 2000, p. 21)

Essa é uma situação minimamente paradoxal, quando se sabe da importância de que professores de todas as áreas e níveis construam uma identidade de formadores caracterizada por competências docentes específicas e por uma postura e prática reflexivas sobre sua ação pedagógica, sobre suas repercussões no desenvolvimento do processo de formação individual, social e profissional do aluno e sobre o cumprimento do seu papel social na qualidade de professores de nível superior (notadamente no caso daqueles que atuam em pós-graduação stricto sensu).

Perrenoud (2002, p. 181) argumenta que a construção de competências[2] deve se tornar um verdadeiro desafio. Um formador de adultos não é um professor que se dirige a adultos. Ele renuncia a virar com pressa as páginas do texto do saber e oportuniza situações em que se aprende a “fazer o que não se sabe fazer fazendo” (MEIRIEU, 1996), em que se analisa a prática e os problemas profissionais encontrados.

Remetendo aos objetivos de formação para a docência imputados aos mestrados acadêmicos e substituindo o termo escola por instituição, vejo como interessante citar alguns dos desafios apontados por Perrenoud (2002, p. 170-1), formulados como contradições não facilmente superáveis, os quais reiteram a relevância de que esses cursos incluam e implementem em suas propostas, curricular e transversalmente, a prática reflexiva  e a formação pedagógica sobre o próprio ato pedagógico. São eles:

·        trabalhar o sentido e as finalidades da instituição, sem transformar isso em missão;

·        trabalhar a identidade, sem personificar um modelo de excelência;

·        trabalhar as dimensões não-reflexivas da ação e as rotinas, sem desqualificá-las;

·        trabalhar a pessoa do professor e sua relação com o outro, sem pretender assumir o papel de terapeuta;

·        trabalhar os não-ditos e as contradições da profissão e da instituição, sem decepcionar a todos;

·        partir das práticas e da experiência, sem se restringir a elas, a fim de comparar, explicar, teorizar;

·        ajudar a construir competências e exercer a mobilização dos saberes;

·        combater as resistências à mudança e à formação, sem desprezá-las; trabalhar as dinâmicas coletivas e as instituições, sem esquecer as pessoas;

·        articular enfoques transversais e didáticos e manter um olhar sistêmico.

O autor ainda adverte que a formação em pesquisa, própria dos cursos universitários de pós-graduação, não prepara, por via direta, para a prática pedagógica reflexiva. As formações não são, contudo excludentes: o espírito científico, o rigor e a descentração são trunfos que a universidade pode colocar a serviço da formação de professores. Porém, mesmo existindo pontos comuns, existem diferenças entre a pesquisa e a prática reflexiva: elas não têm o mesmo objetivo, não exigem a mesma postura, não têm a mesma função e não evidenciam os mesmos critérios de valor.

Numa outra perspectiva – e que, igualmente, reitera a pertinência de transformar a prática docente em objeto de ensino e de pesquisa nos cursos de mestrado – Tardif (2002) constrói uma caracterização dos saberes profissionais dos professores, a qual pode se instituir como referencial importante no planejamento, realização e avaliação do ensino. Em síntese, esse saberes são caracterizados como:

·        temporais (adquiridos através do tempo): no sentido de que provêm da própria história de vida e de vida escolar do professor; no sentido de que são marcados pelos primeiros anos de prática profissional; no sentido de que se desenvolvem e são utilizados no âmbito de uma carreira;

·        plurais e heterogêneos: provêm de diversas fontes, são ecléticos e sincréticos, não formando um repertório unificado de conhecimentos; são utilizados de forma diversa para que sejam atingidos diferentes tipos de objetivos (os saberes profissionais dos professores têm uma certa unidade mais pragmática, não teórica ou conceitual);

·        personalizados (saberes apropriados, incorporados, subjetivados) e situados (construídos e utilizados em função de uma situação de trabalho particular, nela ganhando sentido);

·        portadores das marcas do ser humano (objeto de trabalho dos professores): marcas de sua individualidade, do componente ético e emocional envolvido nas relações com os alunos, do clima da sala de aula, o qual o professor espera seja marcado pela tolerância e pela colaboração.

No contexto dos mestrados acadêmicos, cabe agora voltar a atenção para os mestrados em Turismo. Nesse sentido, recorro à definição de Perrenoud (2001) para o ato de ensinar, qual seja, agir na urgência, decidir na incerteza.

Mutante, complexo, imprevisível, mostra-se o cenário das atividades turísticas. Conhecimento, flexibilidade, adaptabilidade, competência, intervenção, eficácia, entre outras qualificações, espera-se do profissional de turismo. Entre as duas dimensões, está o formador dos turismólogos; na base das características profissionais deste, o seu processo de formação científica e pedagógica. Nesse ciclo relacional, situa-se a preparação do formador para mobilizar saberes, julgamentos, escolhas, tomada de decisões e enfrentamento de riscos, no “aqui” e no “agora”, porém, sempre na perspectiva da construção do futuro. Em outras palavras, a preparação para a ação na urgência e para a decisão na incerteza.

Independentemente de como estejam configurados os cursos em funcionamento no País, parece haver argumentos suficientes para que os mestrados em Turismo, ao lado da formação para a pesquisa, não se isentem de seu papel na formação pedagógica dos formadores dos turismólogos, contribuindo para que esses formadores, associando o conhecimento científico ao pedagógico, se tornem mais aptos a desenvolver sua ação na forma almejada pelos alunos, pela instituição educacional, pela sociedade. 

Um exemplo a título ilustrativo

Exemplo desse entendimento está presente na proposta do curso de mestrado em Turismo da Universidade de Caxias do Sul. Duas são as linhas de pesquisa em torno das quais se concentram os projetos de pesquisa: (a) Turismo e Hotelaria: Organização e Gestão (Estudo das redes de estruturas e relações na área; estratégias de desenvolvimento planejado, integrado e sustentável; políticas públicas; formas de gestão articulada, participativa e compartilhada em Turismo e Hospitalidade) e (b) Turismo, Meio Ambiente, Cultura e Sociedade (Estudo do Turismo como fenômeno socioambiental, cultural, comunicacional, educacional e científico; Turismo como manifestação cultural e de apropriação do meio ambiente, como campo teórico; Turismo e interculturalidade; imagem e imaginários no Turismo). Essa vertente educacional acaba por ter reflexos, não apenas na produção científica dos docentes, como também na opção dos mestrandos em desenvolver sua dissertação de mestrado sobre temas afetos à educação em turismo.

Do ponto de vista da pesquisa docente, cito o projeto que a equipe interdisciplinar (constituída por docentes das áreas de psicologia, educação, letras e turismo), sob minha coordenação, vem desenvolvendo. A proposta de pesquisa partiu do pressuposto de que a Universidade tem, entre suas funções, a de fomentar a produção de conhecimentos que promovam a qualificação permanente dos processos de ensino, oferecendo novos suportes teórico-práticos à atividade pedagógica, assim como a de estimular e ajudar o aluno a gerenciar processos cognitivos potencializando seu desenvolvimento acadêmico e pessoal. Assim sendo, o projeto Referentes para percursos hipertextuais em textos didáticos-rede (situados no âmbito do Turismo)), estabeleceu como objetivo contribuir para o desenvolvimento de tecnologias pedagógicas focadas nos processos de compreensão na perspectiva do desenvolvimento da aprendizagem e construir uma estratégia de ensino-aprendizagem estruturada no uso de perguntas/tarefas caracterizadas como “coordenadas de percurso” voltadas para potencializar a gestão de processos cognitivos na abordagem e compreensão de textos didáticos-rede (TDR), impressos e em suporte eletrônico, no contexto epistemológico-pedagógico de integração de informações em situações de ensino problematizadoras.

No que diz respeito especificamente ao ensino, na disciplina Prática de Ensino: Planejamento e operacionalização, que vem sendo ministrada sob minha responsabilidade, as atividades propostas visam a contribuir para que o mestrando desenvolva competências que o capacitem a administrar o ensino (afeto ao Turismo), planejando-o, ministrando-o, monitorando-o e avaliando-o, em consonância com paradigmas científico-educacionais contemporâneos e dentro de princípios ético-políticos promotores do crescimento pessoal e profissional e do desenvolvimento social. Nessa direção, o programa de ensino, a metodologia e as atividades de avaliação têm por referente a seguinte ementa: Caracterização da formação profissional de nível superior; inserção da prática de ensino na confluência de pressupostos ético-políticos, epistemológicos, psicopedagógicos e técnico-científicos, bem como no processo de desenvolvimento de competências específicas ao ensino na área do Turismo; identificação e análise das interfaces do planejamento, da operacionalização e da avaliação de ensino; elaboração de plano de ensino.

Apenas para efeito de ilustração do trabalho realizado sob a ótica dos pressupostos teóricos anteriormente referidos – sem qualquer intenção modelar, portanto –, poder-se-ia mencionar uma tarefa efetivada em dois momentos, entre os quais, se realizaram os seminários que tiveram por objeto de análise os seguintes tópicos:

 

1.     As dimensões do ato pedagógico

1.1. Relações entre ciência e sociedade presentes no ensino

ð      Bases epistemológicas do ensino e do ensino de turismo

ð      O profissional do século XXI

ð      Qualidades requeridas para o profissional de turismo

ð      O egresso do ensino superior

ð      O egresso do ensino superior em Turismo

1.2. Relações entre ensinar, aprender e avaliar no ato pedagógico

ð      Evolução paradigmática nos processos de ensino e aprendizagem

ð      Qualidades requeridas para o professor de ensino superior

ð      Qualidades requeridas para o professor de ensino superior em Turismo

1.3. Relações entre níveis de planejamento pedagógico

ð      Do projeto pedagógico institucional ao projeto pedagógico de curso

ð      Do projeto pedagógico de curso ao plano de ensino

2.     Prática de ensino: planejamento, regência e avaliação

 

A tarefa solicitada tinha como foco abordagens de estudo do fenômeno turístico numa perspectiva diacrônica. Os tópicos estariam sendo abordados com alunos iniciantes do curso de bacharelado em Turismo. A escolha da forma de desenvolvimento da(s) aula(s) ficou a critério dos mestrandos, conforme objetivos, conteúdos programáticos e metodologia que viessem a definir.

Os conteúdos selecionados pelos grupos de alunos foram: definições de turismo e as plataformas de Jafar Jafari. Os conteúdos, na primeira aula ministrada, foram expostos, com apoio de slides em data show.  Ao longo da exposição, dentro de uma metodologia de cunho tradicional, não houve perguntas dos professores aos alunos no sentido de orientar-lhes a reflexão, de ajudá-los a imprimir novos sentidos às informações por movimentos de intra e inter-relações conceituais ou de relações entre conceitos e realidade.

Na segunda aula, as modificações se fizeram notar, inicialmente, pelo objetivo e objeto dos estudos que seriam desenvolvidos. Voltadas para a compreensão das relações entre planejamento, gestão e desenvolvimento do turismo, de um lado, e concepções sobre o fenômeno turístico, de outro, as atividades propostas tiveram como objeto a identificação e análise da abrangência, complexidade e possibilidades de repercussão do fenômeno turístico, numa perspectiva ao mesmo tempo sincrônica e diacrônica.

Relativamente às definições apresentadas progressivamente, os alunos foram convidados a identificar, entre outros aspectos, o eixo comum a todas, em que elas diferiam umas das outras, que dimensões da sociedade eram abrangidas em cada uma delas. A interatividade professor-aluno foi paulatinamente crescendo, a tal ponto, que, ao serem introduzidas as plataformas turísticas e solicitadas as tarefas subseqüentes, o diálogo fluía naturalmente.

Quanto às plataformas, na figura de um grande painel, estavam esquematicamente apresentadas: a defensora, a de advertência, a de adaptação, a do conhecimento e a pública. Foram então distribuídos textos de diferentes gêneros (incluindo um case sobre Machu Picchu e outro sobre Bali), os quais abordavam formas divergentes de desenvolvimento turístico e suas respectivas implicações sociais, econômicas, culturais. Analisados os textos, estes, então, eram confrontados e associados às plataformas.

Essa atividade teve como culminância uma síntese integradora feita pelos alunos, cujo teor aproximou-se do objetivo que fora traçado – o que denota um grau de compreensão satisfatório em relação ao almejado.

Dispensados os alunos, mestrandos e professora passaram à reflexão sobre a atividade didático-pedagógica que acabavam de desenvolver, buscando como critério referencial de análise os pressupostos ético-políticos, epistemológicos, científicos, pedagógico-metodológicos discutidos no decurso da disciplina. Esse procedimento, de natureza metacognitiva, permitiu aos mestrandos dar-se conta da ocorrência de processos interativos, construtivistas, questionadores (problematizadores) e cientificamente respaldados, que haviam sido realizados pelos alunos, sob sua condução e orientação, de forma ora integral, ora parcial, ora tangencial. Analisaram ainda o trabalho desenvolvido comparativamente à sua primeira versão: a segunda experiência levara a um aprender a aprender, segundo os mestrandos.

Nessa auto-avaliação, foram incisivamente reiterados: o redimensionamento positivo da primeira aula ministrada; a clareza dos diferentes paradigmas científicos adotados nas duas oportunidades de docência; o novo sentido que eles, mestrandos, puderam atribuir aos conteúdos abordados, assim como a contribuição que procuraram dar objetivando que os alunos também pudessem atribuir um sentido teórico-pragmático às aprendizagens promovidas. Enfaticamente destacaram o maior envolvimento pessoal e do grupo no planejamento das atividades, como também dos próprios alunos ao longo da aula. De maneira particular, enfatizaram o grau maior de satisfação que lhes propiciara a interação entre os mestrandos e destes com os alunos.

A essas considerações somam-se aquelas presentes nas respostas constantes do instrumento de avaliação da disciplina (aplicado no último dia de aula), dentre as quais a que reafirma a importância de que a formação pedagógica esteja inserida no curso de Mestrado, devendo, no entanto, ser revisada a natureza eletiva da disciplina e a respectiva carga horária.

“O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem”, é a conhecida frase da escritora Lia Luft. Cursos de mestrado têm, pois, um papel nodal em ajudar os mestrandos a olharem o mundo do turismo (complexo, com suas relações objetivas e intersubjetivas) como estudiosos, pesquisadores, empreendedores, gestores públicos e privados, e até mesmo como usuários, de modo a que desse olhar derivem sempre ações de intervenção social promotoras de melhoria de qualidade de vida. O efeito multiplicador dessa contribuição, no entanto, assenta-se no processo de formação de novos turismólogos. Pensar esse processo, como vimos, extrapola o universo de conhecimentos técnico-científicos específicos da área e permeia o universo de conhecimentos constitutivos do ato pedagógico e a ele associados. Em assim sendo, aos cursos de mestrado passa a estar obrigatoriamente vinculado o processo de formação pedagógica dos formadores de turismólogos.

Se a academia deve preparar os estudantes na e para a construção do futuro, para um mundo “que, agora, tem outro tipo de lógica, a lógica da estratégia”, consoante alerta Mário Carlos Beni (2002, p. 94), a própria academia, estrategicamente, teria de assumir uma nova lógica no processo de formação dos mestres: aquela que lhes propicia novos olhares, novos pensamentos iluminadores de outros novos olhares e pensamentos. E isso se mostra ainda mais premente quando se compartilha com Panosso Netto (2005, p. 31) o entendimento de que o turismo, objeto de estudo e de ação do turismólogo, é a busca da experiência humana, a busca da construção do “ser” interno do homem, fora do seu local de experiência cotidiana, não importando se ele está em viagem ou se já retornou, na medida em que esse ser continua a experenciar, a recordar e a reviver o passado, independentemente do tempo cronológico. O ser humano passa a ser assim o sujeito dos estudos turísticos, o responsável único pela configuração do fenômeno turístico. Sem ele interagindo com a infra-estrutura turística e com as empresas do setor, ter-se-á apenas um fato turístico – ao que, acrescento, reduzido na sua dimensão ontológica e empobrecido de sentidos.

Referências

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[1] Doutora em Educação. Professora do Mestrado em Turismo da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: mcsantos@ucs.br

[2] Uma competência não é um saber procedimental codificado que pode ser aplicado literalmente. Ela mobiliza saberes declarativos (que descrevem o real), procedimentais (que prescrevem o caminho a ser seguido) e condicionais (que dizem em que momento deve se realizar determinada ação). Entretanto, o exercício de uma competência é mais do que uma simples aplicação de saberes: ela contém uma parcela de raciocínio, antecipação, julgamento, criação, aproximação, síntese e risco. O exercício da competência põe em andamento nosso habitus e, sobretudo, nossos esquemas de percepção, de pensamento e de mobilização dos conhecimentos e das informações que memorizamos. (PERRENOUD, 2002, p. 170-171). Entendidas como capacidades de mobilizar diversos recursos cognitivos para enfrentar diferentes tipos de situação, as competências não são elas mesmas saberes, savoir-faire ou atitudes, mas mobilizam, integram e orquestram tais recursos; essa mobilização só é pertinente em situação; o exercício da competência passa por operações mentais complexas, subentendidas por esquemas de pensamento; constroem-se em formação mas também ao sabor da navegação diária do professor, de uma situação de trabalho a outra. (PERRENOUD, 2000, p. 15).