HOSPITALIDADE NO BRASIL IMPÉRIO: A VISÃO DO NATURALISTA GEORGE GARDNER

HOSPITALITY IN BRAZILIAN IMPERIAL SOCIETY: VISION OF THE NATURALIST GEORGE GARDNER

 

João dos Santos Filho[1]

 

 

RESUMO: A historiografia brasileira, referente ao fenômeno do turismo e da hospitalidade é ainda extremamente tímida, pois, utiliza os parâmetros históricos determinados pela lógica da visão etnocentrista. Para tentar mudar essa leitura, estamos desenvolvendo estudos sobre a literatura dos escritores estrangeiros do século XVI ao XIX, que por causas diversas vieram para o Brasil para viver, trabalhar, pesquisar ou passear e resolveram documentar sua estada em território nacional. Começamos com George Gardner, naturalista escocês, que veio para o Brasil em 1836, e permaneceu até 1841, e escreveu em 1846 na Inglaterra o livro: Viagem ao interior do Brasil, principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841.

Palavras-Chave: Turismo. Historiografia brasileira. Hospitalidade. Roteiros.

 

 

ABSTRACT: Brazilian historiography, regarding the phenomenon of tourism and hospitality is still extremely scarce, because, it uses historical parameters determined by the logic of an ethnocentric vision. In order to try to change such understanding, we are developing studies on writings of the foreign writers from XVI to XIX century, who for several causes came to Brazil to live, work, research or for a visit, and decided to document their stay among us. We began with George Gardner, a Scottish naturalist that came to Brazil in 1836 and stayed up to 1941. Back in England in 1846 he wrote the book: Travels in the Interior of Brazil, mainly in the provinces of the North, and in the gold and diamond regions during the years of 1836-1841. 

Key-words: Tourism. Brazilian historiography. Hospitality. Itineraries.

 

 

 

ESCLARECIMENTOS INICIAIS

 

 

Tenho muito de que me congratular porque, embora tantas vezes exposto ao tempo dia e noite, minha saúde foi sempre boa, exceto uma única vez; e, com poucas exceções recebi as maiores expressões de bondade de todos os semelhantes com quem entrei em contacto.

[...]

Não foi sem grande pesar que deixei o Brasil, porque a vida que lá vivi era independente e livre e para minha saúde, seu clima era melhor que o da Inglaterra; que o país é belo e mais rico que qualquer outro do mundo nos objetos naturais a cujo estudo devotei a minha vida (GARDNER, 1975, p. 250).

 

 

        O presente artigo faz parte de um conjunto de pesquisas, que buscam entender a história da hospitalidade na América Latina. No presente caso, selecionamos o período relatado pelo naturalista George Gardner em sua na obra, “Viagem ao interior do Brasil: principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos 1836 -1841”.  Publicado em 1846, 1849 e em 1973 na Inglaterra, e traduzida para o português somente em 1942, e reeditada em 1975 pela editora Itatiaia e pela Universidade de São Paulo.

        Constitui-se em uma das mais belas peças literária sobre os costumes do Brasil Império, pois, Gardner como naturalista e historiador nato, se sentiu atraído pela riqueza e diversidade da espécie animal e vegetal brasileira, descrevendo em detalhes o cotidiano de suas viagens no dia a dia, com atenta observação para os personagens o qual se relacionava. Viajou parte do território nacional, desenvolvendo pesquisas, no campo da botânica, da zoologia, da geografia, e deixando relatos etnográficos de importância ímpar para a antropologia brasileira e para a própria sociologia descritiva.

        Percorreu durante cinco anos, o Brasil em viagens de estudo e coleta de dados, o interessante, é que suas observações vão além de seu interesse profissional, e avançam para questões ligadas a hospitalidade do povo brasileiro, descrevendo roteiros, detalhando o tratamento que recebeu de nacionais no campo da gastronomia e hospedagem. Nesse caso, podemos afirmar, que alguns escritos sobre o Brasil Colônia e Império, acabaram tornando-se roteiros preciosos para a historiografia sobre o Brasil no campo da hospitalidade e do turismo, como afirmamos em trabalho publicado em 2001 na Revista Turismo em Análise:

 

Os roteiros do século XVIII podem ser vistos como roteiros turísticos, pois já se configuram em um produto com valor de uso e de troca e se colocam ao mundo como uma mercadoria a ser consumida pelo interesse econômico e geopolítico (SANTOS FILHO, 2001, p. 79).

 

         Gardner chegou ao Brasil em 1836, permanecendo até 1841, escreveu uma obra literária rica em observações para a elaboração de roteiros, bem como, descrições do cotidiano das diferentes classes sociais que compõem à estratificação social e o modo de ser da população.

        Dentro de nossa pesquisa geral, selecionamos obras escritas entre o início da chegada dos exploradores na América do século XVI até o XIX, correspondendo aproximadamente com o período entre 1524 até 1890. Gardner fez um dos inúmeros relatos de viajantes, considerado um historiador nato, que dentre os jesuítas, cientistas e estrangeiros mostrou-se preocupado assertivamente em captar a noção de hospitalidade do povo brasileiro.

 

 

CONCEITO DE HOSPITALIDADE UTILIZADO PARA A PESQUISA

 

 

        Em primeiro lugar, devemos considerar que os conceitos formulados de um determinado objeto, são sempre provisórios, e na maioria das vezes podem ser considerados ultrapassados. Essa premissa tem guarida no materialismo histórico, que considera o movimento histórico dialético inerente ao movimento da sociedade, entendendo que, os conceitos não possuem eternidade, em virtude da dinâmica histórica que os homens estabelecem no processo histórico da luta de classes.

        Com isso, concordamos com os princípios explicitados por Karl Marx (1976, p. 18), quando afirma:

As premissas de que partimos não constituem bases arbitrárias, nem dogmas; são antes bases reais de que só é possível abstrair no âmbito da imaginação. As nossas premissas são os indivíduos reais, a sua acção (sic) e as suas condições materiais de existência, quer se trate daquelas que encontrou já elaboradas aquando (sic) do seu aparecimento quer das que ele próprio criou. Estas bases são, portanto verificáveis por vias puramente empíricas.

 

        O qual nos serve de trilha, para seguir academicamente, contra toda e qualquer referência teórica do conceito positivista de hospitalidade, que pode vir traduzida por uma leitura econômica e ou política da realidade. Essa preocupação, epistemológica faz-se necessária pela claridade e dimensão que queremos dar ao conceito de hospitalidade, nesse estudo como produto do avanço das relações de produção, isto é, a relação entre o “forasteiro” e os nacionais se realiza dentro de relações timbradas pela cultura de hospitalidade ao outro.

        Hospitalidade em termos sociológicos pode ser sinalizada, pela predisposição do ser humano para a sociabilidade, ou seja, para interagir com o outro via: a acomodação, a competição, o conflito e a cooperação. Essas são formas de manifestar a vida social que segundo o professor Florestan Fernandes (1974, p. 75):

Qualquer que seja o nível de organização da vida que se considere, existir socialmente sempre significa, de um modo ou de outro, compartilhar de condições e situações, desenvolver atividades e reações, praticar ações e relações que são interdependentes e se interinfluenciam (sic) reciprocamente.

 

        Por isso, a hospitalidade pode variar por dois motivos; o primeiro, é que o mesmo depende do estágio de desenvolvimento das relações de produção e das forças produtivas, e o segundo, a hospitalidade se manifesta em decorrência de um processo cultural de uma determinada sociedade. Nesse sentido, a mesma é produto de uma materialidade histórica, dialética decorrente da sociedade que pulsa na relação com os outros, cuja função básica é realizar um relacionamento ou reforçar os já existentes.

        A base da hospitalidade se dá no processo da troca de produtos materiais e simbólicos, que resulta dos serviços que se realiza entre anfitriões e hóspedes. O que significa entender que o movimento da hospitalidade permite transformar: “estranhos em conhecidos, inimigos em amigos, amigos em melhores amigos, forasteiros em pessoas íntimas, não-parentes em parentes” (SELWYN, 2004, p. 26-27). Essa potencialidade modificadora contida nas relações de hospitalidade, nada mais é, do que o substrato das relações sociais.

 

RELATOS SOBRE HOSPITALIDADE    

 

         A primeira coisa que devemos considerar, para que se concretize a relação de hospitalidade é entender qual a sensação que o visitante (George Gardner) teve ao desembarcar no Brasil; num ambiente que não conhecia, e até certo ponto hostil para um estrangeiro, é esse momento que se canalizam os aspectos sinalizadores do processo de hospitalidade. O sentir-se bem, o gostar esteticamente do sítio geográfico que lhe dá prazer, aparece em seu relato, e tudo indica, que houve uma perfeita empatia eufórica, pois o mesmo ficou embevecido, com a paisagem do Rio de Janeiro:

 

Passando pela magnífica entrada, ancoramos a poucas milhas abaixo da cidade, sem poder avançar mais antes de receber a visita das autoridades. Impossível exprimir os sentimentos que dominam o observador enquanto os seus olhos contemplam o cenário belamente variado que se apresenta à entrada do porto, cenário talvez sem rival na face da terra, e em que a natureza parece ter esgotado todas as suas energias. Tenho visitado desde então muitos lugares famosos pela beleza e magnificência, mas nenhum deles me deixou na mente igual impressão (GARDNER, 1975, p. 20).

 

        Gardner vai formando seu conceito sobre a cidade do Rio de Janeiro e ao mesmo tempo, expondo também seus preconceitos; a idéia de inferioridade das chamadas raça nativa e africana faz parte de sua visão etnocêntrica européia de mundo, como podemos perceber, na sua afirmação:

As numerosas canoas e pequenos botes que cortam o porto são todos tripulados por pretos africanos; da mesma raça são transeuntes que passam pelas longas e estreitas, seminus muito deles, suando sob pesados fardos, a exalar odor tão forte, que se torna quase insuportável.

[...]

As ruas estreitas e sórdidas, a catinga de milhares de negros, as emanações dos armazéns de provisões, davam a impressão que podia ser tudo, menos agradável. (GARDNER, 1975, p. 20)

 

        Ao mesmo tempo admite também o lado amistoso e hospitaleiro da cidade do Rio de Janeiro, pois poucos estrangeiros foram tão generosos em sua descrição sobre a Capital Federal, quando detalha que:

Há algumas belas igrejas, mas poucas se acham situadas em posição de realçar a vista. A de Nossa Senhora da Glória é uma das mais notáveis, colocada sobre um outeiro arredondado, do mesmo nome, e que se projeta do mar entre a cidade e a Praia do Flamengo. Além das igrejas há muitos outros edifícios públicos, entre os quais se pode mencionar o Mosteiro de S. Bento, perto do porto, o convento de Sta. Teresa no topo de uma colina, além do belo aqueduto pelo qual corre das montanhas a água que supre a cidade; uma casa da moeda, uma casa da Ópera, um teatro, uma biblioteca que se diz conter cerca de cem mil volumes; um museu de história natural, uma escola de medicina, dois hospitais e, o que é orgulho dos cidadãos a Câmara dos senadores, equivalente à nossa Câmara dos Lordes. É um belo edifício erigido há poucos anos na face norte do Campo de Santana. Encontram-se espalhadas pela cidade umas das belas fontes supridas por aqueduto. Uma destas está situada na praça do palácio e destina-se ao suprimento dos navios surtos no porto. O aqueduto tem mais de seis milhas de extensão e termina junto da cidade por magnífico renque de arcadas duplas. (GARDNER, 1975, p. 21).

 

        Gardner (1975, p. 21) se encanta com o perfil cosmopolita da cidade do Rio de Janeiro, e descreve a Rua do Ouvidor por sua beleza e estética européia, com lojas luxuosas ao estilo britânico e mais uma vez nos brinda com os seguintes dizeres:

A rua do Ouvidor é uma das mais belas da cidade, não por ser larga, mais limpa ou mais bem pavimentada que as outras, mas porque suas lojas são principalmente ocupadas por modistas francesas, joalheiros, alfaiates, livreiros, confeiteiros, sapateiros e barbeiros. Estas lojas são montadas com elegância que surpreende o estrangeiro, sendo muitas delas providas de grandes espelhos semelhantes aos que se vêem freqüentemente em todas as grandes cidades da Grã- Bretanha.

 

        Revela mais uma vez, seu etnocentrismo para com a leitura da realidade, entretanto, não custa lembrar que esse pensar é mais ou menos comum entre os europeus as idéias do famoso naturalista Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon. O que significa, o aporte preconceituoso de ver a realidade tem suas bases no conhecimento científico da época .

        A primeira hospedagem de Gardner (1975, p. 22) no Rio parece não ter sido tão hospitaleira assim, o pobre escocês sofre seu primeiro desencanto com a rede hoteleira carioca em 1846:

 

Alojei-me ao desembarcar num hotel italiano, numa das ruas principais; mas, com não era lugar adequado aos meus objetivos, mudei-me, logo que tive comigo toda a bagagem, para a casa  da pensão de velha senhora inglesa, residente no país havia uns trinta anos.

 

        O autor não deixa que isso confunda seu entendimento sobre a hospitalidade do brasileiro e com grande interesse busca saber como é formada a população da Capital Federal, afirmando:

 

A população do Rio é formada principalmente de portugueses e seus descendentes, brancos e de cor; só os nascidos no país são chamados brasileiros; e desde a independência, em 1822, tem reinado forte animosidade entre estes e os nativos de Portugal (GARDNER, 1975, p. 23).

 

        Denunciando algo que era comum naquele reinado, a animosidade entre o já brasileiro e os “colonizadores” portugueses, que alcançavam dimensões no eixo da política de independência do Brasil do jugo português afetava o comportamento do “bem receber”. Em uma das passagens Gardner percebeu e comentou esse fato de forma mais enfática, escrevendo:      

Têm sido os portugueses grandemente perseguidos, desde os tempos da independência; e, sempre que surgem quaisquer perturbações, muitos são, como natural conseqüência, assassinados e esbulhados de quanto possuem: não há sentimento de simpatia entre as duas nações (GARDNER, 1975, p. 23).

 

        Mas, esse fato, não tira Gardner do centro de seus relatos, pois não podemos esquecer que ele esta descrevendo o convívio de cinco anos no Brasil e com alto grau de agradecimento que permeia seus escritos. Além do que, não manifesta profundamente, nenhuma crítica que quebre seu estilo alegre, parcimonioso e também preconceituoso muitas vezes. Isso se torna claro, quando mesmo escrevendo sobre a hospitalidade brasileira não deixa de exprimir seus preconceitos em relação ao brasileiro:

 

Onde quer que se encontre o brasileiro, é sempre cortês e raramente não é hospitaleiro, especialmente nas zonas menos freqüentadas do país. É muito mais moderado no beber que no comer e muito dado ao uso do rapé e do fumo: daí a freqüência entre eles da dispepsia e moléstias nervosas. O casamento é menos comum no Brasil que na Europa, fato que explica o baixo nível moral aqui existente entre ambos os sexos (GARDNER, 1975: 23).

 

        O caro escocês demonstra que sua base de formação tem como suporte as idéias do naturalista Buffon, na verdade, podemos arriscar afirmando que ele diria “que apesar de hospitaleiro o povo brasileiro é indolente por causa do cruzamento do negro e do índio com europeu”. Pois percebemos na citação a seguir o forte etnocentrismo da época:

 

As senhoras são quase sem exceção bondosas para com os escravos domésticos de ambos os sexos, mas principalmente para com as que foram amas de leite. Em lugares onde não havia nenhum recurso médico, por vezes vi a senhora atendendo em pessoa aos doentes escravos nas enfermarias.

A índole dos escravos, porém, varia. Pela própria natureza do negro – por sua comprovada inferioridade intelectual [...].

Não é das menos fortes provas da deficiência mental do negro o fato de que, mesmo nas zonas mais remotas do país, três ou quatro brancos podem conter trezentos ou mesmo quatrocentos deles na mais perfeita submissão (GARDNER, 1975, p. 25-26) [grifo nosso].

 

        Os preconceitos de Gardner se fundamentam também, no diplomata francês Arthur de Gobineau que em 1854 publicou um livro acerca da "Desigualdade das raças Humanas", em que defendia que a raça "ariana" era superior a todas as outras, embora contivesse algumas "impurezas" devido a misturas com raças inferiores. Essa visão de mundo é decorrente de um processo que vem sendo gestado no século XVIII, de analisar a realidade nos critérios exclusivos do biologismo, que serve para dar guarida aos interesses da classe dominante.

         Os intérpretes da época, academicamente de categoria duvidosa, propõem aquelas analogias terríveis entre a biologismo e o cotidiano da sociedade, na qual a classe dominante faz tudo para defender seus privilégios, até apelar para o conceito de raças superiores e repudiar a mistura das mesmas.

        Nesse contexto, é que surge a noção de raça pura e sangue azul e obviamente espaço perfeito para o surgimento e alimento para as teorias do racismo, como assim afirma o filósofo Georg Lukács (1972, p. 539):

 

Los ideólogos de la nobleza comienzan a defender las desigualdades estamentales entre los hombres com el argumento de que estos privilégios no son sino la espresión jurídica de la desigualdad que la propia natureza establece entre las diversas clases de hombres entre las razas, razón por la cual forman parte de la “naturaleza” misma, contra la que ninguna institución puede atentar sin atentar, al mismo tiempo, contra los más altos valores de la humanidade.        

 

        Esses princípios ideológicos dominavam o pensamento científico da época e não eram diferente no jovem naturalista George Gardner, que expressa em suas descrições atitudes racista, pois sua formação é resultado do mundo em que vive. Queiramos ou não, ele é um homem de sua época que não pode ser desqualificado, mas, sim admirado por aquilo que deixou registrado em suas observações no campo da hospitalidade.

        Guardner, em sua viagem exploratória ao Rio de Janeiro, trabalha em pesquisas para a identificação de espécies vegetais e animais. Faz um comentário extremamente importante para a história da nascente rede hoteleira no Brasil e que pode servir para investigação para novas pesquisas:

 

Em Piedade, onde apenas se encontravam umas poucas casas esparsas, estava em construção um grande hotel, do Coronel Leite, senhor brasileiro que vinha abrindo à própria custa uma nova estrada através da Serra dos Órgãos, para se ligar à que vai de Porto Estrela aos distritos de mineração (GARDNER, 1975, p. 34).

       

        Pode parecer sem significado imediato o relato acima, mas o mesmo é de suma importância para auxiliar no processo de que todos nós devemos colaborar no intuito de resgatar uma historiografia nacional do fenômeno turístico.

        Relata que, quando estava na fazenda do amigo inglês Mr. March foi levado a visitar um brasileiro em sua casa, na qual teve o privilégio de degustar um jantar substancial:

 

O jantar era substancial e bem preparado, mas todos os pratos conforme o costume do país, eram muito temperados com alho. Cobria a mesa uma toalha limpa, em que numa das pontas se amontoava uma porção de farinha de mandioca, e, na outra, de farinha de milho. Sobre uma destas se colocava grande prato de feijão cozido, com um pedaço de toucinho no meio; enquanto sobre o outro havia um prato de galinha ensopada. Também havia porco assado e chouriço. De iguarias e de farinha cada um se servia por si. De vegetal, tínhamos um prato de palmito (Euterpe edulis), macio e delicioso, com sabor semelhante ao de aspargos.

Durante o jantar foi-nos servido um copo de vinho de Lisboa e, à sobremesa, doces de várias espécies (GARDNER,1975, p. 41-42).

 

        Em sua viagem à Bahia relata a hospedagem num hotel, passagem que não foi nada agradável:

 

Após breve permanência, dirigimo-nos a um grande hotel em frente ao teatro, onde nos alojamos por essa noite; mas com leitos desconfortáveis, com os ruídos de rua e com o tilintar ainda mais alto de dólares num aposento bem em baixo do nosso, até quase quatro horas da madrugada, nosso repouso noturno não foi dos mais tonificantes (GARDNER,1975, p. 48).

 

        Provavelmente o teatro mencionado é o São João, construído em 1812, localizado na Praça Castro Alves e local de praia de pescadores e desembarque de pequenos navios. O autor se refere ao jogo de cartas que estava ocorrendo abaixo de sua habitação e do barulho na rua, que deveria ser zona portuária.

        Dirigindo-se para Maceió depara-se com uma situação, que apesar de sua visão racista como já comentamos, sabia perceber as diferenças sociais com certo rigor crítico e comenta:

 

Como o capitão da canoa era da aldeia, fui convidado a pousar em sua casa; mas, como não havia cama, fui obrigado a deitar- me num couro, no recanto de um quartinho. Mal adormecera, fui despertado por uma legião de percevejos, que se despejaram das fendas das paredes de barro. Não podendo suportar o tormento, levantei-me e, levando para fora da casa o material que me servia de leito, sacudi-o bem e, estendendo-o ao ar livre, ali dormi confortavelmente até a manhã surgir (GARDNER, 1975, p. 61).

 

         E com muita tranqüilidade aceita a hospitalidade de pessoas que pertencem a distintos extratos sociais, na verdade há casos que não havia muitas opções de escolha, pois a realidade, de pobreza e miséria no país se faz presente. Mas isso, ao contrário não compromete a hospitalidade para com o visitante, pois a “ato de bem servir ao próximo”, além de ser bíblico faz parte da personalidade do brasileiro que, segundo Darcy Ribeiro (1985, p. 13),  a formação do povo se deve a:

 

O Brasil tem sido, ao longo dos séculos, um terrível moinho de gastar gentes, ainda que, também, um prodigioso criatório. Nele se gastaram milhões de índios, milhões de africanos e milhões de europeus. Nascemos de seu desfazimento, refazimento e multiplicação pela mestiçagem. Foi desindianizando o índio, deasfricanizando o negro, deseuropeizando o europeu e fundindo suas heranças culturais que nos fizemos.

Somos, em conseqüência, um povo síntese, mestiço na carne e na alma, orgulhoso de si mesmo, porque entre nós a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Um povo sem peias que nos atenham a qualquer servidão, desafiado a florescer, finalmente, como uma civilização nova, autônoma e melhor.

 

        Podemos afirmar que Gardner vai incorporando uma compreensão cada vez mais social da realidade brasileira, e para isso, despoja-se lentamente de seus preconceitos europeus. Como podemos perceber, quando de sua chegada pela noite em Sergipe, teve de se hospedar em uma casa de prostituição:

 

Eu teria preferido uma casa vaga; mas, como esta não se podia obter, fiz levar minha bagagem à única que o Pedro pudera arranjar, e que só mais tarde soube ser habitada por uma rapariga solteira, que ali exercia uma profissão que não é tão desconceituada no Brasil como na maior parte dos outros países. Em pequeno cômodo desta casa passamos a noite em nossas redes, suspensas de um e outro lado do quarto (GARDNER, 1975, p. 65).

       

        Pela manhã Gardner usa suas cartas de apresentação e as entrega ao Juiz de Direito do Distrito, que sensibilizado convida-o a hospedar-se em sua casa, principalmente após averiguar as condições de onde se instalara. Comovido, o juiz reafirma o convite e explica que hospedagem no Brasil é muitas vezes uma dificuldade, com exceção da cidade do Rio de Janeiro e da Bahia.

        O interessante é que Gardner relata que o juiz pronuncia um breve comentário,  chamando a atenção, para a hospedagem no Brasil, portanto, o primeiro relato no interior da historiografia brasileira que menciona o problema de hospedagem:

Em nenhuma cidade ou vila deste Império, exceto no Rio, Bahia e em um ou outro distrito de mineração, se encontra uma estalagem de qualquer espécie, e as poucas que há pertencem a estrangeiros. E muito tempo ainda terá de passar antes que tal comodidade ingresse nos costumes do país; porque os brasileiros, quando viajam, levam consigo criados, provisões, apetrechos de cozinha e camas; e é raro que não encontrem uma ou outra casa vaga em alguma aldeia durante a viagem (GARDNER,1975, p. 65).

 

         É interessante destacar a existência das “casas vagas” nos povoados para atenderem aos viajantes, na verdade poderíamos afirmar que há uma rede de casas vazias, sem qualquer serviço, à disposição do visitante, lembrando um rancho coberto.  Significa que a noção de criar hotéis em áreas fora do eixo de poder (desconsiderando São Paulo) era algo longe de ser sentido, em razão do baixo desenvolvimento das relações de produção.

        Com relação à hospitalidade dos brasileiros para com o estrangeiro, Gardner não cansa de elogiar, em algumas de suas muitas descrições, relata:

 

Na véspera da partilha inúmeros presentes me foram mandados para meu uso na viagem, potinhos de doces, biscoitos feitos de farinha de arroz ou milho, frangos assados e outros segundo um costume quase universal no norte do Brasil (GARDNER, 1975, p. 88).

 

Nos quatro meses que passei nesta cidade [Oeiras] fui tratado com a máxima polidez e hospitalidade por todas as classes sociais, muito mais com efeito, que em qualquer outro ponto do império em que morei por algum tempo. O Barão [de Parnaíba] me foi particularmente obsequioso: porque, além de me prover casa, mandou meus cavalos às pastagens de uma sua fazenda e teve-me como freqüente convidado à sua mesa. Ele toma as refeições bem a velha maneira dos barões, em uma mesa muito longa que se estende de uma a outra extremidade de grande sala. Senta-se à cabeceira e os hóspedes em bancos compridos colocados aos lados, com os lugares mais baixos frequentemente ocupados pelos seus campeadores mais comuns (GARDNER, 1975, p. 131).

 

Darwin, em seu Diário, menciona que há poucas casas no Chile onde um viajante não seja recebido para pousar à noite, mas dele se espera uma gratificação pela manhã e que mesmo um rico aceitará dois ou três xelins. No Brasil é muito diferente: no caminho, ora muito freqüentado, do Rio de Janeiro até a zona de mineração, sempre se encontram casa que fazem às vezes de estalagens e em que se espera pagamento do viajante; mas, se ele se hospeda em qualquer das grandes fazendas, deixam-no comer gratuitamente à mesa, só pagando as rações necessárias aos animais. Nas partes mais distantes do país sempre encontrei a mais ilimitada hospitalidade mesmo das classes menos favorecidas, e muitas vezes a tênue recompensa que essa pobre gente aceitava era um pouco de pólvora ou sal, artigos muitas vezes não se obtém por preço algum (GARDNER, 1975, p. 137).

 

        A base da hospitalidade brasileira no período do Império se constitui muitas vezes pela relação de escambo, essa sinaliza uma sociedade extremamente rural, em que as relações de produção e as forças produtivas estão baseadas nas relações de compadrio e de intensa relação associativa. Quando chegavam os viajantes provenientes da costa brasileira, era normal “bem atender” ao visitante com a perspectiva de conseguir produtos que só seriam possíveis de ser obtidos nos grandes centros, como o valiosíssimo sal e a procurada pólvora.

        Gardner (1975, p. 175) relata também, o comportamento avarento e explorador que alguns coronéis demonstraram ao hospedá-lo:

 

O dono da fazenda, Capitão Faustino Vieira, mostrou-se de índole avarenta e muito menos hospitaleiro que os fazendeiros que conheci nesta província. Embora sua casa fosse boa e cômoda, tivemos de nos instalar em rancho aberto, que servia para cobrir o engenho de cana da fazenda. Cobrou-nos, os preços mais exorbitantes por tudo o que lhe compramos, exigindo pela carne de vaca cinqüenta por cento mais que o preço corrente naquela região do país e fez o mesmo com relação à farinha e ao milho para os cavalos .

 

Mas adiante, depois de percorrer viagem a manhã toda, Gardner (1975, p. 176) e seus companheiros param no rancho para o almoço, e mais uma vez demonstra sensibilidade política ao se referir à hospitalidade dos mais humildes para com sua expedição:

 

Na manhã seguinte, depois de longuíssima légua e meia de marcha, paramos para o almoço em uma pequena habitação chamada Boa Vista, nome impróprio porque o sítio, além de côncavo, é cercado de árvores. A casa era de miserável aspecto, mas uma velha dona, muito atenciosa e cortês, ofereceu-nos umas limas doces, que saboreamos com delícia, depois de escaldados por um sol ardente.

 

        Gardner (1975, p. 177) se refere também à hospitalidade de um negro e pelo que dá para perceber seria um alforriado:

 

[...] passamos a tarde e a noite na fazenda de S. Antônio, de propriedade de um preto muito hospitaleiro. Partindo desse lugar de manhã cedo uma jornada de duas bem longas léguas levou-nos à fazenda seguinte chamada Dores, que fora abandonado desde algum tempo por seus habitantes.

 

        Mais adiante descreve a hospitalidade de um índio:

 

Meia légua adiante paramos durante o dia na casa de um índio, em um lugar chamado Pascoada. Quando chegamos, o homem estava fora trabalhando na roça, mas sua mulher nos recebeu com grande hospitalidade, mandando imediatamente um de seus filhos levarem-nos grande cesto de laranjas e outro de batatas-doces e uns ovos, tratando-nos de modo bem diferente daquele a que estávamos desde algum tempo acostumados (GARDNER, 1975, p. 181).

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

 

        As observações de Gardner nos permitem entender algumas características da hospitalidade do povo brasileiro, no período do Império, dentre elas podemos destacar:

·        Que o povo brasileiro é hospitaleiro, pois independente de seu padrão social, a maioria coloca a disposição do forasteiro, sua própria casa para abrigá-lo. Compartilhando da alimentação, bebidas e da função do anfitrião em tornar alegre e segura sua pequena estada;

·        O processo de hospitalidade é facilitado, quando o forasteiro consegue providenciar cartas de apresentação, que serão entregues a coronéis com poder econômico e social, bem como, juizes ou padres da comunidade;

·        A hospitalidade possui forte ligação com a atividade de escambo, ou seja, o sal e a pólvora são elementos fundamentais para alimentar e facilitar o processo do “bem receber”, pois muitas vezes, se constituía na forma de pagamento pela hospitalidade recebida;

·        As poucas estalagens existentes eram de propriedade de estrangeiros a qual possuíam uma infra-estrutura básica, entretanto, surgirá à estalagem “tipo brasileiro”. Quartos vazios, em que o hóspedes tinham que armar sua rede, fazer as alimentações e acomodar seus pertences;

·        Os brasileiros quando viajam, simplesmente deslocam sua criadagem para acompanhá-los, levando todas as provisões necessárias, apetrechos de cozinha para elaborar as refeições, e as redes ou couro de boi para as camas. Pois é raro que encontrem uma ou outra casa vaga em alguma aldeia durante a viagem;

·        Há uma prática por parte dos brasileiros de construir “casas vagas” destinadas a receber os forasteiros. Essas seriam casas sem mobiliário preparadas para atender ao visitante, na qual se paga uma taxa ao seu proprietário.

        Com o estudo da obra “Viagens ao interior do Brasil: principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de           1836-1841” de George Gardner, a historiografia brasileira, no campo da hospitalidade e do turismo, ganha a possibilidade de recompor seu arcabouço teórico/filosófico, pois os estudos dos relatos históricos sobre o Brasil Colônia e Império estão apresentando novos caminhos para as pesquisas, e alimentam a formatação de uma história nacional da hospitalidade e do turismo. Fortalecendo o entendimento do turismo como ciência, e afastando de alguma forma a leitura etnocentrista, ainda forte no estudo do turismo brasileiro.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

FERNANDES, Florestan. Elementos de sociologia teórica. 2. ed., São Paulo: Nacional, 1974.

 

GARDNER, George. Viagens ao interior do Brasil: principalmente nas províncias do Norte e nos distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1975.

 

LUKÁCS, Georg. El asalto a la razon: La trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Barcelona/México: Grijalbo, 1972.

 

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã I: crítica da filosofia alemã mais recente na pessoa dos seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão na dos seus diferentes profetas. Portugal: Presença, 1976.

 

RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos. Rio de Janeiro: Guanabara, 1985.

 

SANTOS FILHO, João dos. Ordem Régia de Censura a Roteiros Turísticos do Século XVIII: André João Antonil no Índex. Turismo em Análise. São Paulo: ECA/USP, v.12, n. 1, 2001.

 

SELWYN, Tom. Uma antropologia da hospitalidade. In: LASHLEY, Conrad; MORRISON, Alison (orgs.). Em busca da hospitalidade: perspectivas para um mundo globalizado. Barueri, São Paulo: Manole, 2004.

 

 

 

 

 

Artigo recebido em abril de 2008.

Aprovado para publicação em julho de 2008.

 



[1] Bacharel em Turismo pelo Centro Universitário Ibero-Americano de São Paulo (Unibero) e em Ciências Sociais pela PUC/SP. Mestre em Educação pela PUC/SP, professor-convidado na Faculdad de Filosofia e Letras da Universidad Nacional de Heredia (UNA), em San José da Costa Rica. Professor da Universidade Estadual de Maringá, autor do livro “Ontologia do turismo: estudo de suas causas primeiras”. E-mail: joaofilho@onda.com.br